“O Senhor não vê como o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor vê o coração” (1Sm 16, 7).
De que te adiantaria a outros repetir o que de outros ouviste desde longo tempo até aqui, se teu coração, contínua e insistentemente, permanece longe de viver este teu atual momento? De que te adianta repetir ditos de muitos dizeres, se, antes, não é preocupação tua assumir e expressar, na própria vida, por atos consequentes, a verdade do que a ti se tem anunciado insistentemente? Para que aprender a dizer palavras, construir frases que podem até comover, se em tua vida há tantas reticências em assumir, definitivamente, a verdade de uma forma clara e plena, como a um discípulo convém fazer? De que adiantaria poder falar bem alto o que a ti e a outrem bem alegra o coração, se, em tempos de provação, não tens permanecido em serenidade, como convém aos que tão somente não confiam em sua humana capacidade? Se o tempo da provação, na verdade, não te tem purificado, mas revoltado; se, em razão disso, tu te sentes aquém do esperado, faço-te um pedido: recompõe-te, volta aos trilhos e muito mais por ti ainda se fará.
Considera, pois, a necessidade de escutar. Escuta, primeiramente, os ruídos que perturbam a tua alma. Lembra-te, ainda, de que o que vês depende de teu olhar. Aquilo que não vês depende, também, em grande parte, das coisas que não queres enxergar. A qualidade do teu olho diz da qualidade do que tu haverás de enxergar. A maneira como tu percebes diz também do ângulo que se forma entre ti e o objeto que tu estejas a observar. Tu queres enxergar longe quando, primeiramente, deverias enxergar o que há por perto. Tu não podes querer aprofundar uma realidade sem antes, em direção a ela, dares os primeiros passos. Se teu olhar não for purificado, tu não haverás de perceber o que de mais trivial existe ao teu lado. Purificado, teu olhar conseguirá perceber, em largo e em profundo, o que está subjacente a toda fala, a toda ação.
Lembra: toda presença cumpre uma função. A tua presença deve revelar o que estiver escondido pela beleza do teu olhar e nunca o desejo de julgar. Tu e aquele a quem julgas participam da mesma humana condição, onde cabe solidariedade e nunca julgamentos, veleidades. Se tu olhas para julgar, a ti mesmo julgas, porque ages pondo-te acima de quem participa da mesma condição e limites humanos de que fazes parte. Quem nos julga é a nossa própria posição pró ou contra a Verdade.
Antes de julgar, convém observar a qualidade do teu olhar, pois o teu olhar consegue enxergar somente a partir do ângulo formado entre o objeto a ser observado e o lugar a partir do qual tu estabeleces a observação. Nem tudo cairá sob a tua percepção. Parcial é tudo quanto tu percebes do muito que te escapa. Portanto, nem tudo vês de tudo o que do outro lado está.
Assim tem sido. Assim será.
Pe. Airton Freire