Interrompo este retiro de silêncio, em quase final de tarde. Tenho algo a partilhar contigo. Hoje pela manhã, morreu um pequeno parceiro em nossa capela onde estava eu pregando um retiro.
Quanto a isso, nada de extraordinário. Milhões de pássaros, grandes ou pequenos, nascem e morrem, pelo mundo inteiro, todos os dias. Este, contudo, bem pequeno, entrou no espaço onde estávamos e ficou, logo de início, debatendo-se, procurando uma saída. Dessa mesma forma, milhões de pessoas – quais pássaros – pelo mundo inteiro, entram em espaços onde não pensaram e debatem-se, depois, procurando sair.
De onde eu estava, olhando o pequeno pássaro, comigo mesmo pensava: “se, ao menos, ele “descesse”, encontraria uma saída.
Inútil.
O pássaro insistia em ficar nas alturas.
Eu pensava: “quem o ajudaria a “descer”, afim que uma saída ele encontrasse, já que, sozinho, não poderia”?
O dia se passou.
Dois dias se passaram.
O pássaro, debatendo-se contra a parede continuava.
Enfraquecia-se.
Mesmo assim, o pássaro não “descia”.
Passei a pensar em várias pessoas que eu conhecia. Também sofriam.
Somente depois de aprisionadas é que percebem a liberdade que, antes, possuíam. Mas, o pássaro, com certeza, isto não entendia.
Contra a tela que protege as janelas do alto da capela o pássaro continuava a debater-se e, visivelmente, enfraquecia-se.
Inquietava-me vê-lo. Em mim, um pensamento insistia: “porque ele não descia? Tão mais fácil seria”! Ficar no alto sempre, sem olhar para baixo, sem procurar saída, como é difícil!!!! Mas, isso ele não via.
Em gestos repetitivos, debatia-se.
Por fim, já sem forças, o pássaro caiu. Levantou-se tropegadamente.
Foi acudido por um servo,Vinicius e por uma serva, Aninha. Levaram-no para fora da capela, colocaram-no no jardim da Casa de Retiros.
Deram-lhe água e comida.
Era visível sua ferida.
No final da manhã de hoje, em virtude de ferimentos e fraqueza, o pássaro falecia. Sofri.
Pensei, de imediato, em algumas pessoas que, há muito tempo já não via.
Continuava eu apesar: “porque lá do alto ele não “descia”? Eu estaria à sua espera para ajudá-lo.
No uso de sua liberdade, somente fazer por ele mesmo – como dar o primeiro passo – só ele mesmo poderia.
Enfim, enfraquecido sem ajuda (teria eu,em algum momento, me omitido? Teria ele percebido que a ajudá-lo eu ali estaria?)
Quanto esse pensamento quanto doía!
Mas, o pássaro se foi.
Outro ainda viria? Se viesse, da próxima vez como seria?
Sei que milhões de pássaros nascem e morrem todos os dias.
Aquele para mim era único, foi único.
Nunca mais, outra vez, com vida eu o veria! Esse pensamento mas ainda me doía!
É quase final de tarde. Interrompo, exatamente, o retiro de silêncio para partilhar contigo a dor que sinto:
“Porque ele não percebeu que junto a ele eu estaria? Bastaria que ele “descesse” e, na base, me encontraria.
Estou triste!
Teu servo
In Christo
Padre Airton
Nem sempre aquilo que tu dizes “deve” é um comando inevitável que terei de executar. Se disseres “deve”, eu pensarei se é possível. Se tu disseres “vai” eu penso: se não queres, através de mim, que eu vá contigo. Se quando tu dizes “ amo”, considero, primeiramente, que tu amas em mim mais do que a mim. Se tu me queres como suporte, como aporte do que, de freqüente, não consegues falar, eu me pergunto: por que isto tem que continuar? Por isso, é preciso prestar atenção onde o querer não coincide com o desejar e onde o querer e o desejar de mãos dadas podem estar; do contrário, nós nos enfrentaremos, embora nos amando e, mesmo nos querendo, não nos entenderemos.
Pe. Airton Freire
(Texto do Livro “Querer e Desejar”)
“Toda pessoa participa de um legado, assim como aquele que realiza uma missão participa de um chamado. A transmissão que tu farás para os teus dirá respeito ao que de maior valor existe no íntimo de tuas moradas. Se tu trabalhares para manter esse legado que jamais deverá ser perdido, vendido ou negociado, tu estarás preservando o que de melhor em ti há. Esse tesouro te formará, acompanhar-te-á e te norteará quando, na vida, tiveres de passar por algo que te faça sofrer.”
Pe. Airton Freire