“Estranhas e próprias preocupações. Esse é o fosso da separação. Vive-se o que se vive, alheio às razões de se viver assim.
‘Ai que perfume, que delícia! C ést il de Paris? É de família essa aí? Uau! Qual sobremone? Parlez vous français? Não, somente English, né? E as próximas férias, quando serão? EUA, Europa, Japão? Onde então? Sabe qual foi o preço do meu barco? Barco, não; melhor dizendo, boat. Chique, né? Ai que colosso!’
O que fazer, o que dizer? Quando parar? Quando dar-se conta de que não se pode assim continuar? Esse abismo, nos exemplos acima citados, quando será finalizado? A tudo isto tem que se dá continuidade? Não há nisso, também, de nossa parte, alguma cumplicidade? Será luxo, capricho, alguma idiossincrasia, essa vontade expressa de mudar este estado de coisas, esse estilo de vida por algo mais coerente, mais transparente? Ou é preferível deixar tudo correr como barco à revelia? Pode-se assistir a tudo isto, passivamente, como se assiste a um espetáculo de alguma escadaria? Se assim não tem que ser, por que não dá cabo a essa agonia? Por que cavar o próprio túmulo, se para viver é que nascemos um dia? Onde encontrar a carta de alforria? Onde encontrar as lamparinas para se clarear a noite e antecipar o dia? Onde começamos a errar, a desandar, um dia? Como chegamos a criar tamanho fosso de desigualdade? Como ainda pensa que, para se viver, não há outras possibilidades? (…) Se, humanamente falando, concluíres que o atual sistema de vida está doente e que, cedo ou tarde, chegará a um ponto de saturação, eu te direi: é evidente.” (Pe. Airton)