Meditações Quaresmais
Pe. Airton Freire
Uma explicitação da Salvação:
Uma explicitação da salvação precisa ser pragmática e compreensível, pois a fé vem pelo ouvir. Más como pode alguém crer naquilo que não entende? Uma soteriologia ( explicitação da salvação) mínima deve conter pelo menos o seguinte: O pecado cria alienação (cisão) entre Deus e o homem. A intervenção de Deus, através de Jesus, aponta o caminho para Deus e convida o homem a uma de-cisão.
Uma questão inicial há de ser colocada:
Não de agora, mas desde os primórdios do cristianismo, uma questão ocupa uma posição central no pensamento teológico do Ocidente, sobretudo, a saber, a morte de Jesus, na cruz, como sacrifício expiatório pelos pecados da humanidade. A forma exclusiva como este fato é colocado e que problematiza sua compreensão que, antes de qualquer interpretação, há de ser contextualizada.
A realidade dos sacrifícios, em vigor entre os hebreus desde os tempos da Abraão (20 séculos antes de Cristo), terminou após a queda de Jerusalém por Tito, general romano, no ano 70 da era cristã. Nesse contexto de sacrifícios de expiação teve lugar o acontecimento Jesus de Nazaré, cuja vida, morte e ressurreição foram objeto de estudos, dentre outras coisas, ao longo dos séculos que se sucederam.
No que concerne a Cristo Jesus, apresenta-se Deus Pai com desejo de reparação pela ofensa cometida pela humanidade contra sua soberania e escolhe ele seu Filho para lhe oferecer um sacrifício cruento como condição para que ele, o Pai, a parte ofendida, conceda o perdão, “ fazendo recair sobre ele o peso se nossas faltas”, citando, textualmente, Isaias 53, 4-6, que diz: Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas, ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”.
Na interpretação literal desta passagem, somada a outras, concluiu-se que Deus desejava e planejou a salvação da humanidade mediante a transferência de um castigo que pesava sobre todos os mortais para o Filho, tornando-se ele, por esse procedimento, o Senhor e Salvador.
Con-textual-izando o fato:
A recusa do plano de Deus, que contempla o amor, o perdão, a paz, a justiça e outros valores de que necessitamos todos e cada um nós, seres humanos, para vivermos a “vida plenamente”, é fato registrado na história de todos os povos, em todos os tempos. Portanto, a inaceitação de um plano de amor é universal e, nessa condição, patente é a necessidade de “voltar à razão primordial de ter sido criada a Humidade. Historicamente, tal recusa deu-se nos tempos de Jesus de maneira explícita atingiu a vida de um povo e todos os povos.
Segundo São João, os lideres religiosos judeus de seu tempo representam, de modo paradigmático, a recusa de toda humanidade a Deus. A oferta gratuita de Deus, em seu Filho foi rejeitada (Jo 1,10s; 7,7;At 4,26s). As “trevas” recusaram a “Luz”, cuja culminância aconteceu na rejeição a Cristo Jesus (Jo 1,5; 3,19; Lc 22,53).
Toda a vida de Cristo foi uma entrega ao Pai. A sua fidelidade, única em toda a história da humanidade, revelada em sua vida e em seu modo único, igualmente, de referenciar-se ao Pai, revelaram-no sendo mais do que o que do Messias se esperava e da missão que realizava. Estava em pauta o advento do “ Reino de Deus” “no meio de nós” (Lc 9,2; 11,20; 22,18; Mc 9,1; Jo 1, 26; Jo 7, 28). Como tal recusa foi por Deus “administrada”? Com a doação incondicional e ilimitada do Filho. “ Tendo amado os seus que estavam no mundo, ao extremo ele os amou” (Jo 13,1), acontecimento de toda uma vida, localizado no evangelho de Joao na época da Páscoa. Digo-lhes que com cruz nós fomos assim como, sem cruz, em Cristo seríamos salvos. Ele e não a cruz é que nos salva. Pois, ele não veio ao mundo para fazer um sacrifício, que não eram do agrado de Deus, mas para fazer a vontade do Pai (cf. He 10, 9) e a vontade do Pai “ é que não se perca nenhum daqueles que o Filho lhe deu” ( Jo 6,39).
Então, vem a pergunta: a morte de Jesus foi uma ação humana, resultado de uma recusa a sua pessoa, à sua mensagem ou uma ação de Deus?
Quando lemos “O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus a quem vós matastes, crucificando-o no madeiro” (Atos 5,30) entendemos que foi uma ação dos seres humanos que “ se coligaram, em comum acordo, contra o Senhor e seu Ungido” ( At 4,26). Fizeram-no para que fosse eliminado de seu meio aquele que tinha se tornado motivo de “ queda e soerguimento de muitos em Israel” (Lc 2,34) Negaram-se, negando-o, numa ação de desconhecimento da própria gravidade do ato que realizavam, “não sabendo o que faziam” (Lc 23,34), condenando-o como “um criminoso” (Lc 22,37). Assim entendido, a morte de Jesus foi uma ação eminentemente humana contra Deus, dos que se fecharam a Ele.
Na verdade, os acontecimentos da sexta-feira, daquele 14 de Nisan, foi algo tão difícil de entender que, somente aos poucos, os discípulos começaram a compreender que “convinha que o Messias sofresse todas essas coisas para entrar na sua glória”(Lc 24,26), pois, antes, esperavam “ que fosse ele o que remisse Israel ”(idem) e entendiam ter sido obra dos “ principais dos sacerdotes” e de “ príncipes que o entregaram à condenação de morte, e o crucificaram (Lc 24,20). A partir de Jesus, à luz da Ressurreição, eles entenderam que Deus transformou o crime dos seres humanos em seu contrário. A cruz tornava-se, a partir da Ressurreição, não mais expressão da negação a Deus e ao seu eleito, mas tornara-se o “sim” ilimitado de Deus pela humanidade. Em razão disso, inicia-se a busca de compreender o lugar da cruz no plano salvívico de Deus. Como poderia Deus transformar um ato de rejeição num sinal de revelação de quanto ele ama o mundo “de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16) Ainda aqui, perceba-se, a finalidade de vir o Filho ao mundo foi a de não o fazer perecer, mesmo que tendo vindo para os seus, estes “ não o tenham acolhido” (Jo 1,11). Antes, antes, sinal de castigo (romano) contra malfeitores, tornou-se o sinal visível de que Deus que, em Jesus, não revogou seu sim para “salvar o que estava perdido” e “ dar sua vida em favor de muitos” (Mc 10, 45; Mt 20,28) Assim é o amor de Deus. Isto nada tem a haver com transferência de culpa da humanidade para recair sobre o Filho e aplacar a ira de Deus, fazendo-lhe justiça. Este foi Jesus, o Servo de Deus. Assim, ele nos “serviu” (nos salvou) e bebeu o cálice (sofrimento, solidão, dor da recusa) até o fim. Devia Jesus ser fiel, mesmo que isto lhe custasse a vida. Mas, o acento aqui não recai sobre o sofrimento, a cruz, a morte, mas, sobre sua fidelidade. Por ter sido vitimado, o que o vitimou participou do que foi revertido por Deus em salvação. Assim, neste contexto, podemos entender o lugar da morte e da cruz na obra da salvação (Mt 8,31; Lc 17,25; Lc 22,37) Fora disso, não faz sentido. Pois, Deus nunca planejou a morte de seu Filho. Ele deseja “a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 12,7). Avesso ele é a qualquer sacrifício humano. Isto desde o Antigo Testamento (Lv 18,21; 20,2-5; Dt 12,31; 18,10; Jr 7,30s; 20,26 ). Não foi para assinar o Filho no mundo que o Pai o enviou, mas “ para que o mundo seja salva por ele” (Jo 3,17).
Não é justo atribuir a Deus uma injustiça humana cometida contra Jesus; pois, Jesus era inocente de sua morte, pois “passou pela vida fazendo o bem”- ) Não era vontade de Deus ver o Filho crucificado e de forma tão cruel. Enviando-o ao mundo, uma natureza humana como a nossa o Pai lhe deu, para que, “sem renunciar a sua condição divina” (Fl 2,6), vivesse em tudo como nós e tendo vivido na carne o que vivemos, ele “é capaz de se compadecer de nossa fraqueza” (He 4,15), pois, assim como Pai, com que ele “é um só” (Jo 17,22) ele “ conhece a nossa estrutura e se lembra do pó que somos nós” (Sl 102/103, 14) Enfim, “entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo me preparaste” (He 10,5). Desejou Jesus e assim o fez, que o seu amor por toda a humanidade chegasse a todos mediante sua doação ao Pai (“dado por vós, para a remissão dos pecados”- Lc 22,19). O corpo dado, uma vida inteira, via pela qual Deus entrou no mundo de forma plena e nunca como antes acontecida, prolongamento e consequência de sua Encarnação.