Pe. Airton Freire
A vida a dois se inicia numa busca de reconhecimento de um desejo, em forma de demanda, o que em sucesso nem sempre resulta, em razão das (in)determinações desse mesmo desejo, que regem as escolhas, condutas e modos de pensar de cada um dos parceiros. Tantas são as manifestações dessa busca (o reconhecimento se dá em razão da falta que busca o preenchimento), que os (des)encontros traduzem o que conseguem bem ou mal administrar. Nas encenações onde é representado, o sujeito não se reconhece. Isso, por si mesmo, já fala do que, depois, em vivendo sob o mesmo teto, carecerão os parceiros de suporte para dar, à vida a dois, continuidade.
Se é próprio do ser humano produzir enunciados que fomentam sentido, em resposta às questões essenciais de sua existência, não há uma resposta, nem uma representação, nas quais o sujeito possa se definir. É a pretensão de querer respostas sem falhas que causa o sintoma, o primeiro, esse do esvaziamento da relação, como de não raro tem acontecido ultimamente. Ao longo da vida a dois, há de ser isso percebido, não obstante um e o outro, por toda a vida, jurarem ser e se culparem por não terem sido.A verdade, sem rodeios e sem medo, há de ser vivida dentro dos limites que cada um dos parceiros traz consigo. A transparência de vida, ao permitir que o sujeito da relação se reconheça como submetido às encenações em questão, tem por efeito tornar possível a desarticulação dos elementos em jogo. Há desarticulação do que mantém o sujeito numa conformidade, aquela precisamente de uma sujeição. Para esse trabalho, não há um modelo que possa ser proposto de forma pronta, senão a dois ser construído.
O caráter conflituoso da vida a dois aparece de modo manifesto, já que a exigência radical de não colocar nenhum limite à confiança, condição imprescindível a todo e qualquer prosseguimento, encontra resistências que estão, sem cessar, em obra no indivíduo e seu ambiente. O que não for, no casal, suficientemente trabalhado tende a se repetir e, se não bem administradas, tais situações hão de gerar contínuas e renovadas tensões.
Na relação que se instaura, a partir de elementos não devidamente assimilados ou trabalhados, uma ou outra parte haverá de colocar em ato posições subjetivas antigas. O laço engendrado é tanto mais forte quanto a tensão exercida permaneça sem resposta e em suspensão ou de satisfação ou de toda espécie de finalização.O princípio ético que se impõe de chofre é que uma tal relação não seja, sob nenhum pretexto, utilizada para outros fins senão os de aprofundar a relação em vista do objetivo comum de vida que ambos se dispuseram a construir lado a lado. Aqui, inscreve-se a radicalidade do compromisso firmado, uma vez por todas, diante do Senhor. Utilizar-se do conhecimento dos limites do parceiro para, em seguida, disso tirar algum proveito, envolve o risco de não se saber, antecipadamente, em que pode resultar. Não cabe, como justificação da não observância desse dado de realidade, qualquer presumível explicação. Conta-se o procedimento e não sua interpretação. Isso é essencial na relação a dois. A tensão oriunda dos deslizes, nesse ponto, não é da ordem da explicação abstrata ou do reenvio aos termos de uma (in)conveniência para alguma das partes. Pois, tais exposições, que ficam, na maior parte das vezes, sem força face às conseqüências de uma tal situação, só fariam opor uma convicção a uma outra. A condição de continuidade do projeto comum de ambos implica que cada parte reconheça e aceite o lugar (igualdade na diferença) que ao outro designa, sem transgredi-lo. O que é freqüentemente chamado de “fim da relação” é o efeito da malversação sobre um dos parceiros.
Por sua própria natureza, matrimônio se coloca em posição de responder, por um ato de desejo e compromisso, a uma possibilidade real de se construir um projeto de vida a dois. Isso pode, ao longo do tempo, tornar emergente certas conexões e fixações inconscientes do desejo, estas já vividas na relação de seus próprios pais. As operações de enlace/desenlace que daí resultam tornam possíveis novos agenciamentos pulsionais, imaginários (ciúmes fundados ou infundados) e linguageiros (formas de tratamento incondizentes para qualquer uma das partes), por meio dos quais tanto o homem quanto a mulher descobrem-se com capacidade de pensar e viver de forma a construir a relação a dois e serem felizes.
Família: por Cristo, com Cristo e em Cristo
Pe. Airton Freire
Os elementos constitutivos da vida a dois podem, sob diferentes ângulos e matizes ser abordados. Para todos, entretanto, o matrimônio só tem sentido enquanto instrumento que permite instalar, do lado de cada uma das partes, a regra de se viver um para o outro, sem perda da individualidade, o projeto de vida pelo qual ambos decidiram, no uso de sua liberdade.
Uma nova posição marca a vida conjugal, tanto para o homem quanto para a mulher. Há que se observar a regra dita de “cumplicidade”, pela qual ambos se percebam de um mesmo projeto fazendo parte.
É preciso sublinhar que o essencial, na permanência da relação a dois, reside em situar os mecanismos que levam a defesas dos dois lados, ao não se permitir inteiramente amar e, em decorrência, a não perdoar e superar limites próprios à humana condição. Impasses desta natureza conduzem a construir o seu próprio mundo quer para “ir levando até onde puder dar” quer como forma de compensação ao que se sente por não querer mudar. Neste caso, relativizando-se os conflitos, tomam-se os ditos pelos não ditos, interdito, bem ou mal ditos, “enquanto der para levar”. Antes de querer mudar, há de se perceber em ponto se está.
A continuidade dos propósitos que fundamentam a vida conjugal não decorre de um discurso sobre o que devem fazer, nem das intermináveis discussões sobre o melhor método que torne possível sua manutenção. O que se transmite pela via do que se mantém a dois decorre do íntimo conhecimento de si, potencial e limites, admitidos e trabalhados. Nessa construção da vida a dois, o que se adquire por vivência depende da disposição, de constante renovada, de manter-se esse lugar, espaço do possível de uma convivência saudável, sempre dialogada.
Marido e mulher são assim colocados na posição de administrar possíveis impasses, tensões, que comportam toda humana relação. Administrar a vida pessoal sem contradição com a vida a dois, será uma de suas funções esperadas na vida conjugal.
Superações ocorrem para suscitar e manter, de um para o outro, esta abertura que é a condição do prosseguimento da relação saudável.
Ponto pacífico é que a vida a dois é uma formação permanente.
A ética, na vida de um casal, regula-se sobre a manutenção de um espaço de liberdade e verdade, onde cada parte possa ser claro no seu desejo que, em situações diversas, será manifesto, num ato de reciprocidade. Esta ética funda-se sobre um princípio de alteridade que repousa não apenas sobre o reconhecimento do outro como diferente, mas também e, de princípio, sobre o reconhecimento de um lugar específico onde se desdobra o que do amor decorre, malgrado mal uso faça-se, não raro, dessa palavra.
Finalizemos esta nossa exposição com o pensamento do Cardeal James Francis Stafford na Peregrinação Aniversária de Julho em Fátima: “A espiritualidade conjugal fundamenta-se no mistério do Verbo Encarnado, Jesus Cristo, o Esposo da Igreja. A substância da primeira leitura, tirada do Livro do Génesis, repete-se e aprofunda-se na leitura tirada da Epístola aos Efésios: “E os dois serão uma só carne’. Este é um profundo mistério, e o que eu digo é que se refere a Cristo e à Igreja”. Aqui, São Paulo esclarece o mistério da comunhão de Cristo com os ‘santos’ da Igreja por meio de um sinal nupcial: o ser ‘uma só carne’ do homem e da mulher. Ele mostra assim que a nupcialidade é uma característica essencial do amor. E insiste em que o mistério da Encarnação encerra uma lógica especial. Quer dizer que o Deus Invisível Se torna Visível através de uma genuína manifestação de Si Mesmo no mundo do homem e em sua história. O Primeiro Prefácio de Natal transmite lindamente a representação que Deus faz de Si Mesmo na Encarnação: “Por meio do mistério do Verbo Encarnado, a nova luz da Vossa claridade brilhou aos olhos da nossa mente, para que, conhecendo nós Deus de modo visível, possamos ser arrebatados por este meio para o amor de coisas invisíveis”.
Janeiro de 2010.
Questionar o matrimônio, nos limites de sua crise atual, para preservar dele sua razão de ser como espaço de geração da vida e participação no processo criador, o que inclui, também, o cuidado com os filhos, implica se referir ao conjunto de princípios fundamentais que o norteiam. Face a uma crescente onda de apresentá-lo como espaço de convivência, com um fim em si mesmo, que não a precípua razão de expressar amor e respeito mútuos, pela vida partilhada um com o outro e com os filhos, há que se reafirmar não haver outra principal razão de ser dessa específica relação a dois e que isso constitui o “núcleo comum sobre o qual convém não ceder”. Essa referência, nesses termos, ao matrimônio, poderia servir de suporte para a compreensão do que ele vem a ser.
Há, no matrimônio, uma ética e uma deontologia que implicam em ter claros objetivos quando vem a acontecer. Assim posta a questão, pode-se, a partir daí, ter a medida de referência capaz de responder a eventuais disposições regulamentares (em parlamentos já aprovadas) suscetíveis de querer modificar o estatuto do matrimônio. De outra parte, para dar apoio à implantação eventual de estruturas novas, como, por exemplo, a participação e a responsabilidade da mulher na vida social e familiar de forma conciliada, é preciso distinguir entre as práticas oriundas um modelo patriarcal e conservador e princípios inerentes ao lugar único da mulher na sociedade, a partir da família, cuja ausência traz consigo graves prejuízos para a saúde dos próprios filhos. Embora nem sempre tais questões tenham sido bem compreendidas (emoções afloram rapidamente, a partir desse tema, sob o já conhecido embate de homem X mulher), um número crescente de pessoas tem se engajado a trabalhar pela afirmação e defesa da instituição familiar.
É possível formar e informar àqueles que se interrogam sobre a razão de ser do matrimônio como sendo ali o lugar possível da demanda consciente e humana de “não ser bom o homem ficar só” (Gênesis). É também possível, aos que se interrogam sobre a especificidade da vida matrimonial, deixar claro seu valor e seu lugar, hoje, apesar da fragilidade das relações, no campo social, com desdobramentos tantos para a vida de todos os indivíduos. Os que, nos princípios que marcam a razão de ser da família, reconhecerem-se, serão convidados a sustentá-los, isto é, mantê-los.
Pe. Airton Freire